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terça, 06 de dezembro de 2011

Tráfico: não compre, não incentive!

Só uma mudança radical de atitude por parte da população pode acabar com o terceiro comércio criminoso mais lucrativo do mundo

Terra da Gente

(Foto: divulgação)

Embora não haja números precisos sobre a quantidade de animais silvestres capturados ilegalmente nos ecossistemas brasileiros, existem estatísticas da fiscalização: são cerca de 40 mil animais apreendidos anualmente, apenas no Estado de São Paulo! Calcula-se que o tráfico de animais seja o terceiro comércio criminoso mais lucrativo no mundo, movimentando, segundo a Rede Nacional Contra o Tráfico de Animais Silvestre (Renctas), aproximadamente US$ 20 bilhões anuais, abaixo apenas do tráfico de drogas e armas. Em torno de 10% disso seria no Brasil. Segundo Dener Giovanini, coordenador geral da Renctas, esta atividade ilegal pode ser responsável pela retirada de até 38 milhões de animais dos ecossistemas brasileiros, todos os anos.


Neste mês de março, uma operação coordenada pela Política Federal prendeu 72 pessoas acusadas de integrar uma quadrilha que vendia animais silvestres brasileiros dentro e fora do País. Apelidada de Operação Oxóssi – orixá do candomblé associado à caça e à prosperidade – a ação levou mais de um ano em investigações e mostrou que a quadrilha agia em nove estados e movimentava cerca de R$ 20 milhões ao ano com comércio de 500 mil animais, a maioria de espécies em extinção.


A tragédia cresce se levarmos em conta as perdas devido aos maus tratos durante a captura e o transporte. A crueldade a que esses animais são submetidos já é motivo para se execrar e combater esse crime. Mas não é tudo: as consequências ambientais são também devastadoras, ameaçando levar à extinção tanto as espécies traficadas, como as espécies a elas relacionadas, desequilibrando todo o ecossistema que as envolve.


O tráfico de animais é uma das causas da chamada síndrome das florestas vazias, objeto de preocupação de pesquisadores como o biólogo Mauro Galetti, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Ele trabalha em fragmentos de Mata Atlântica, onde a falta de animais para fazer a dispersão de sementes pode levar à extinção várias espécies da flora brasileira. Segundo Galetti, cerca de 10% das plantas utilizam chuvas, ventos ou rios na dispersão de sementes, enquanto 90% pegam ‘carona’ nos animais frugívoros. Sem a dispersão de sementes, a floresta não tem como se regenerar. Um animal retirado da mata deixa de cumprir sua função ambiental: não se reproduz, não combate pragas, não dissemina sementes nem poliniza flores, não serve de alimento para outras espécies.


“Em uma época de valorização do reflorestamento, por conta das mudanças climáticas e da falta de água, é bom lembrar que os bichos plantam árvores melhor do que os humanos”, diz Airton de Grande, analista ambiental do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). “O açaí e a castanha que comemos foram plantados por bichos, assim como o pinhão. Uma gralha azul é capaz de plantar mais de mil pinheiros de araucária por hectare e 90% das sementes ingeridas pelo jabuti se tornam propícias à germinação. Cada animal retirado é um jardineiro a menos na natureza”.


De Grande aponta, ainda, que a falta desses animais pode acarretar problemas econômicos no abastecimento hídrico, pragas na agricultura, falta de matéria-prima para o extrativismo. “Ao trazer animais silvestres para as cidades, pode-se colaborar também para o surgimento de zoonoses (doenças transmitidas ao homem por animais) e acidentes, como ataques e mordidas de macacos e onças”, diz.


O destino dos animais traficados é variado. As espécies raras – e mais valorizadas – normalmente vão para colecionadores. Algumas são destinadas a pesquisas e biopirataria. E grande parte se torna bicho de estimação, vira lembrança ou amuleto (couros, dentes, penas etc.). Estima-se que 60% dos animais traficados sejam comercializados no País.


Uma das maiores dificuldades para combater o tráfico é a cumplicidade da população brasileira, que não acredita fazer mal ao comprar pássaros, papagaios e tartarugas. Isso vale para animais comprados em feiras, estradas, lojas ilegais e, às vezes, até em lojas legalizadas. “É comum ouvirmos pessoas contarem que compraram o bicho por pena, porque pareciam maltratados. Mesmo nesse caso, ainda estão colaborando com o tráfico”, alerta Antonio Ganme, agente de fiscalização da Superintendência do Ibama em São Paulo.


Mudar essa cultura é um dos objetivos do Ibama, que realiza campanha para os meios de comunicação deixarem de mostrar espécies silvestres como animais de estimação. “É preciso lembrar que a logística utilizada para transportar os animais é a mesma usada para drogas, armas e madeira. Quem leva uma coisa, traz a outra e assim por diante”, explica Ganme.


Os animais são escondidos sob caixotes com outras mercadorias por cima, em fundos falsos de malas, bancos e portas de veículos. Muitos são dopados ou mutilados para facilitar o transporte ou parecerem mais valiosos. Periquitos, por exemplo, são pintados para parecerem filhotes de papagaio. “No ano passado, em Presidente Prudente (SP), encontramos papagaios escondidos dentro de um sofá, por baixo do forro”, conta o capitão Walter Nyakas Jr., chefe da divisão operacional de Policiamento Ambiental do Estado de São Paulo.


Além da cumplicidade da população, também a legislação dificulta a repressão ao crime, mesmo que os principais locais de comercialização sejam conhecidos. A Lei de Crimes Ambientais enquadra ações como matar, perseguir, caçar, utilizar, vender, expor à venda, transportar e manter em casa espécies da fauna silvestre sem autorização. No entanto, não existe na legislação brasileira o crime de tráfico de animais. “Por isso, o tráfico é considerado um crime de menor potencial ofensivo, com penas de 6 meses a um ano de detenção”, explica Nyakas. “Geralmente, quando o preso vai a julgamento, a sentença é praticar ação voltada ao meio ambiente ou recuperar o dano”.

Mesmo se já não é réu primário, na prática, o traficante não vai para a cadeia. Os presos na Operação Oxóssi, por exemplo, já estão todos soltos, segundo confirma Antonio Ganme.
A legislação prevê sanções administrativas, como multas de até R$ 50 mil, no caso de espécies em extinção. “Mais da metade dos crimes ambientais em São Paulo são relacionados à fauna. Por conta disso, realizamos patrulhamento preventivo em feiras e terminais rodoviários (legais e clandestinos); bloqueios em rodovias; vistorias no comércio. Mas o carro-chefe é o atendimento de denúncias da população”, acrescenta o capitão.


Embora a lei pareça muito branda, para a procuradora federal do Ibama, Veridiana Bertogna, houve uma grande evolução. Até a Constituição de 1988, a fauna era considerada um bem privado, que pertencia a quem o encontrasse. Segundo o Código Civil de 1916 (válido até 2002), os animais eram considerados res nullius (coisa de ninguém). Com a nova Carta, os animais silvestres hoje são considerados um bem de uso comum do povo e têm sua titularidade difusa. Civilmente, são res omnium (coisa de todos). Quer dizer, mesmo quem possui autorização legal para criar ou portar um animal silvestre não é seu dono, tem apenas uma concessão. “É uma mudança radical, às vezes difícil de ser entendida”, avalia a procuradora.


O tráfico de animais é estruturado em uma rede formada por vários agentes, a começar pelos apanhadores – normalmente índios, caboclos e ribeirinhos pobres. Eles vendem aos distribuidores – barqueiros, pilotos de avião, caminhoneiros e motoristas de ônibus –, normalmente acordados com feirantes, donos de pet-shops e criadores ilegais. Os consumidores são criadouros, zoológicos, aquários, circos, laboratórios, turistas e a população em geral, segundo o Ibama.


Conforme o coordenador da Renctas, Dener Giovanini, as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste (todas áreas de grande biodiversidade) concentram as capturas, embora os animais da Mata Atlântica – já bastante ameaçados pela perda de hábitat – também sejam traficados. Para a comercialização, os animais são levados para os grandes centros urbanos, como o eixo Rio-São Paulo. Ou seguem para áreas de fronteira seca, por onde os animais capturados no Brasil são levados para outros países para receber documentação falsa e, a partir daí, alcançar o mercado internacional.


“Recentemente fizemos uma apreensão na Zona Norte do município de São Paulo e verificamos que os animais eram de uma região de Minas Gerais. Contatamos a polícia mineira e, no mesmo dia, realizaram apreensões lá também”, conta o capitão Nyakas. Segundo ele, a maior dificuldade, quando são feitas as apreensões, é o destino a ser dado aos animais.


A legislação brasileira determina que, sempre que possível, os bichos devem ser soltos em seu hábitat natural e isso acontece com quase 80% deles. Mas nem sempre é possível determinar a origem de todos os bichos. E muitos estão debilitados fisicamente ou já não estão mais aptos a viver em liberdade. A insuficiência de locais credenciados para destinação faz com que, em muitos casos, os animais apreendidos fiquem com o próprio infrator, então chamado ‘fiel depositário’.


As aves – sobretudo canários-da-terra, coleirinhas, trinca-ferros, papagaiosverdadeiros e araras-canindé – correspondem a mais de 70% das apreensões. Depois vêm os répteis – como jabutis e tartarugas tigre-d’água –, seguidos por mamíferos, com destaque para macacos e saguis. Mas também são encontradas muitas serpentes, aranhas e insetos, cujos venenos são disputados por biopiratas.


Educação ambiental para conscientização da população e repressão às atividades ilegais são as duas principais armas contra o tráfico. Muitos especialistas defendem ainda a criação legal em cativeiro como uma forma de abastecer o mercado sem causar impactos nos ambientes naturais. Atualmente, inclusive, está em discussão no IBAMA uma lista de espécies silvestres cuja criação em cativeiro seria liberada para comercialização.

Para Antonio Ganme, porém, esta não é a melhor solução: “Criar animal silvestre como bicho de estimação é um costume cultural que deveria ser mudado, como aconteceu com o uso do cinto de segurança e como vem acontecendo com o cigarro. Prova de que a criação estimula o tráfico é que as espécies mais criadas – curió (Oryzoborus angolensis); canário-da-terra (Sicalis flaveola); trinca-ferro (Saltator similis) e coleirinhas e papa-capins (gênero Sporophila) – são também as mais traficadas”.


Esta postura, no entanto, está longe de ser unânime. Para Giovanini, da Renctas, os criadouros comerciais não incentivam o tráfico. “Tenho convicção que a grande maioria dos criadores é formada por pessoas honestas e corretas. É claro que existem criadores irregulares, assim como também existem organizações não-governamentais na mesma situação. Mas o comércio legal pode ajudar a combater o ilegal, desde que haja uma política ambiental ampla e com regras claras, que facilitem a fiscalização e contribuam com a conservação das nossas espécies silvestres”.


Apoio e informação

Falta de perspectiva, conhecimento e presença do Estado são grandes incentivos à captura de animais silvestres para a venda. Normalmente empobrecidas e esquecidas pelo poder público, as populações de áreas florestais no Brasil se tornam a ponta de uma atividade ilegal que, tempos depois, acaba prejudicando a própria sobrevivência.


Mas essa situação pode ser revertida, como demonstra o Projeto de Conservação do Papagaio-de-cara-roxa, desenvolvido pela Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS) nos 21 quilômetros quadrados da Ilha Rasa, no litoral do Paraná. Com cerca de 750 moradores, vivendo em 4 comunidades de pescadores, a ilha é coberta, sobretudo, por Mata Atlântica, além de restinga e mangue. É também um dos principais locais de moradia e reprodução do papagaioda-cara-roxa (Amazona brasiliensis), espécie ameaçada de extinção e endêmica (exclusiva) daquela região do País.


Quando o projeto começou, em 1998, a captura de papagaios – uma presa fácil, por colocar seus ovos anualmente sempre nos mesmos ninhos – era uma atividade comum para os moradores e servia como complemento de renda em épocas de pouco peixe. “Não sabíamos que era proibido caçar. Desde a época do meu pai, havia carteirinha para caça e pesca. Também não sabíamos que este papagaio, tão comum por aqui, não existia em nenhum outro lugar e que poderia acabar”, conta Antonio da Luz dos Santos, pescador que hoje é funcionário da SPVS e um dos responsáveis pelo monitoramento dos ninhos – naturais e artificiais – na ilha.


Foi dele a ideia de construir ninhos artificiais com caixas de uvas para substituir os ninhos naturais, que foram diminuindo pela queda das árvores com ocos ou pela predação. Com a instalação dos ninhos artificiais – inicialmente de madeira e atualmente também de PVC – a população de papagaios na ilha aumentou e vem se mantendo estável, em cerca de 1.700 indivíduos.


“Os papagaios eram encomendados em Paranaguá, Guaraqueçaba e Curitiba. Eu pegava os filhotes no ninho e cuidava deles em casa por um ou dois meses até terem idade para não morrer, e aí entregava, o que não era muito fácil para mim e minha mulher, porque nos afeiçoávamos a eles. Hoje tomamos conta dos ninhos e, se alguém pegar papagaio na ilha, vamos denunciar”, afirma Antonio.


Segundo bióloga Elenise Angelotti Bastos Sipinski, coordenadora do projeto, além da proteção aos ninhos e da contagem da população de papagaios (censo), a SPVS realiza trabalhos de educação ambiental e social nas comunidades, com atividades como artesanato e apoio à mobilização dos moradores para trazer água do continente para a ilha. Hoje, o abastecimento é realizado com água de uma reserva da SPVS no continente. “Aqui não tem presença do poder público e cada um faz o que quer. Por isso fizemos esse trabalho mostrando a importância do animal e colaborando com os moradores. A comunidade se sente importante, mais conscientizada”, comenta Elenise.


Alescar Vicente Cassilha, também pescador e funcionário da SPVS, lembra de quando era criança e a ilha tinha muito papagaio. Até começarem a caçar com espingarda. “No início, pegavam para comer, depois passaram a vender, e vender barato, qualquer dinheiro levava. Se a SPVS não chegasse aqui, não tinha mais papagaio”, assegura.


Mas a conscientização dos ilhéus não será suficiente, sem que o restante da sociedade siga o mesmo exemplo. “Há pouco tempo estava hospitalizado no continente e uma enfermeira, que não sabia que trabalho para proteger os bichos, me pediu para pegar um casal de tartarugas para ela”, continua Alescar. Minha resposta foi: “Ô dona, quer me ver na cadeia?”

Silvestres ou domésticos?

Segundo a legislação brasileira, toda fauna silvestre, nativa ou exótica, é protegida e só pode ser manuseada com autorização legal.

Nativas são todas as espécies residentes ou migratórias, aquáticas ou terrestres, que ocorrem naturalmente no território brasileiro ou em águas jurisdicionais brasileiras.

Exóticas são espécies cuja distribuição geográfica original não abrange o território brasileiro, incluindo aquelas introduzidas em ambiente natural brasileiro, pelo homem ou espontaneamente. O fato de uma espécie não ser nativa não a exclui da proteção legal: a comercialização só pode ser feita com autorização.

Estão fora dessa regra apenas os animais domésticos, ou seja, todos aqueles que, através de processos tradicionais e sistematizados de manejo ou melhoramento zootécnico, passaram a apresentar características biológicas e comportamentais em estreita dependência do homem. Entre eles, estão cabras, cachorros, camelos, cavalos, coelhos, galinhas, gatos, vacas etc. Os peixes, considerados recursos pesqueiros, também não são reconhecidos como fauna silvestre – mesmo os comercializados como ornamentais.

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