terça, 17 de agosto de 2010
Agência Ambiente Energia
Em entrevista exclusiva à Agência Ambiente Energia, Elias Fajardo fala sobre a relação de consumo com a sustentabilidade ambiental e social. Seu livro Consumo consciente, comercio justo - conhecimento e cidadania como fatores de produção, lançado pela Senac Nacional, traz entrevistas com o economista, professor e consultor da Organização das Nações Unidas (ONU), Ladislau Dowbor; a socióloga Fátima Portilho; Leticia Casotti, especialista em comportamento do consumidor; Johann Schneider, consultor internacional de comércio justo, e o engenheiro Renato Regazzi, responsável pelos programas de Cadeias Produtivas e Arranjos Produtivos Locais do Sebrae Rio.
Nelas são debatidas a nova economia que busca qualidade de vida e solidariedade. O consumo já é entendido como exercício de cidadania e o comércio se reformula para reforçar seu caráter de troca e convivência. Nesse cenário, o conhecimento é um fator de produção da maior importância. O livro apresenta experiências bem-sucedidas nestas áreas no Brasil e no mundo.
Elias Fajardo é jornalista, escritor e artista visual. A partir de 1970, trabalhou na Bloch Editores, no Jornal do Brasil como subeditor de política internacional, no jornal O Globo como repórter especial do Segundo Caderno e da Editoria Geral e foi editor das revistas mensais Ecologia e Desenvolvimento e Cadernos do Terceiro Mundo durante seis anos. De 1996 a 2005, foi chefe de redação do programa de televisão Globo Ecologia. De 1998 em diante, tornou-se colaborador das revistas Diga Lá e Senac e Educação Ambiental.
Agência Ambiente Energia - O que levou a escrever o livro?
Elias Fajardo - A necessidade de me dedicar a outros temas, além do universo da ecologia que já venho tratando desde o início dos anos 90. Em discussão com a equipe do Senac Nacional, surgiu a ideia de abordar temas econômicos com um enfoque humanista e contemporâneo. O que está sendo feito para tornar o comércio, o consumo e a economia mais próximos dos anseios e do entendimento da grande maioria dos cidadãos? A partir desta pergunta surgiu o livro.
Agência Ambiente Energia - O que é consumo consciente?
Elias Fajardo - O consumo está no centro da sociedade contemporânea. Todos os seres vivos consomem, pois se alimentam e usam recursos naturais. Daí a ligação forte entre o ato de consumir e a preocupação com o meio ambiente. Não é possível falar em sustentabilidade sem trabalhar com estas duas realidades. Para viver, o ser humano precisa, basicamente, de alimento, abrigo, afeto e alegria. Mas a vida em sociedade se tornou cada vez mais complexa, surgiram necessidades baseadas em desejos e fantasias nunca totalmente satisfeitos e que variam de uma pessoa para outra e também no tempo e no espaço. Isto levou ao surgimento da sociedade de consumo, ou seja, um grupo social vivendo em estágio avançado de desenvolvimento industrial. Tal sociedade está ligada à economia de mercado, que busca equilibrar a oferta e a demanda por meio da circulação de capitais e produtos, sem intervenção direta do Estado. E o ato de consumir passou a ter tal importância que, no nosso mundo fragmentado, o principal terreno da atividade social deixa de ser a produção e passa a ser o consumo. E os produtos têm uma capacidade de significação que os consumidores transferem para dentro de si por intermédio da manipulação de diferentes códigos criados pelos profissionais de marketing.
Atualmente, o crescimento da consciência de quem compra e usa mercadorias e serviços está mudando o cenário. O ato de consumir tende agora a deixar de ser visto como sinônimo de atitude alienada e passa por novas interpretações. Uma delas considera que exercitar o consumo faz parte da cidadania e pode ser até uma forma de protesto, pois nele está embutido um desafio. Escolher mercadorias significa orientar-se com base em um conjunto de valores; eleger um bem ou um objeto implica rejeitar outros cujas maneiras de produção eu não aprovo. Sou contra trabalho escravo e o desmatamento indiscriminado da Amazônia. Por isso, me recuso a comprar produtos de empresas envolvidas com estas questões. Assim, desenvolvem-se formas colaborativas e conscientes de discutir e atuar.
Agência Ambiente Energia - O que é comércio justo?
Elias Fajardo - É um segmento comercial que se baseia na solidariedade econômica e financeira. Nele não existem vencidos nem vencedores, pois se procura evitar que uma parte perca para que a outra possa ganhar. Quando todas as partes envolvidas ganham, a atividade comercial adquire caráter mais igualitário e estimulante para quem a pratica. É algo relativamente novo e em evolução no cenário mundial: uma relação baseada na interação entre fornecedores e empresários que vendem, em geral, para consumidores de países desenvolvidos, mercadorias elaboradas por produtores de países em desenvolvimento organizados em associações e cooperativas.
A palavra inglesa fair trade (comércio justo) é empregada internacionalmente para identificá-lo. Segundo a International Federation of Alternative Trade, Federação Internacional de Comércio Alternativo (IFAT), o comércio justo é uma parceria comercial baseada em diálogo, transparência e respeito, que busca maior equidade no comércio internacional. Contribui para o desenvolvimento sustentável por meio de melhores condições de troca e da garantia de direitos para produtores e trabalhadores marginalizados, principalmente nos países em desenvolvimento.
O comércio justo não se restringe às relações comerciais; inclui também iniciativas de cooperação entre produtores, importadores e consumidores, que podem inclusive se desdobrar em atividades paralelas ligadas à gestão, ao treinamento de pessoal especializado e ao associativismo.
Quem produz procura valorizar aquilo que oferece ao mercado, mas também sua própria identidade pessoal e coletiva. Quem compra e importa com ética comercial e ambiental pode, por exemplo, financiar previamente o plantio de um produto agrícola para garantir a continuidade de seu fornecimento. E quem consome estabelece um compromisso com os produtores e procura se informar sobre a origem e as condições em que são produzidas as mercadorias.
Agência Ambiente Energia - Como estes dois segmentos interagem?
Elias Fajardo - São duas faces de uma mesma moeda. Não existe comércio justo sem consumidor consciente e vice-versa. Esta é uma tendência em crescimento em todo o mundo. Quanto mais consumidores, comerciantes e prestadores de serviço se organizarem e passarem a cooperar, buscando formas mais eficientes e voltadas para o interesse comum, mais estes segmentos estarão unidos e tenderão a se desenvolver.
Agência Ambiente Energia - Está provado que o modelo de produção e consumo utilizado hoje contribuiu para aprofundar alguns aspectos da desigualdade social e do desequilíbrio ambiental. Como reverter este quadro no Brasil no curto, médio e longo prazos?
Elias Fajardo - Não existem fórmulas prontas nem é fácil reverter um quadro que vem desde a colonização. O Brasil foi construído como uma terra de exploração ilimitada de seus fartos recursos naturais e humanos. E isto levou a um quadro de desigualdade considerado dos maiores do mundo. Mas acredito que o caminho se faz ao caminhar. Os primeiros passos já foram dados e indicam a potencialidade das mudanças. Somos um país em que um pedreiro nordestino inventou uma cisterna de placas de cimento que permite armazenar água sem desperdiçar e que está sendo implantada em massa no Nordeste. Somos o país em que o trabalho voluntário realizado pela Pastoral do Menor diminuiu drasticamente a desnutrição infantil. E assim por diante.
Programas de redistribuição de renda brasileiros estão mudando este quadro no plano econômico, e uma maior conscientização com relação à conservação do meio ambiente também ajuda a compor um bom cenário. Mas há, no entanto, alguns equívocos: um deles, por exemplo, é acreditar que nossas reservas de petróleo do pré-sal são a salvação da lavoura energética. Eventos como o vazamento do Golfo do México - a maior catástrofe ambiental americana - mostram que, tão ou mais importante quanto garantir a tecnologia para extrair petróleo, é gerar e implantar uma tecnologia de prevenção de acidentes. É preciso falar também na necessidade premente de incrementar o uso e a difusão de energias alternativas.
Agência Ambiente Energia - Como está sendo desenvolvido o programa do Sebrae Rio de Cadeias Produtivas e Arranjos Produtivos Locais?
Elias Fajardo - O Sebrae participa da construção de Arranjos Produtivos Locais (APLs), cuja tônica é a seguinte: nos setores em que a produção é frágil e precisa otimizar recursos, créditos e bens de capital, é possível cooperar com o concorrente. Por outro lado, compete-se em outras áreas, e isso aumenta a produtividade. O APL tem uma atividade econômica industrial predominante, mas nele também podem existir outras, como o turismo. Empresas cooperam e uma complementa a atividade da outra. Nas confecções, uma firma corta, outra costura, uma terceira embala e, juntas, fazem a manutenção das máquinas e a gestão. Nesse arranjo, todo mundo pode ser empregado ou empreendedor, vai depender do perfil e da visão de futuro da comunidade. Não se pensa mais só em mão de obra, mas em "cabeça de obra", ou seja, em quem ajuda a elaborar e a fazer. O empregado pode se tornar quase um sócio do empreendedor e crescer profissionalmente. Já o patrão pode se compor com a capacidade produtiva do empregado. E o lucro, assim como o risco, é compartilhado por todos. Se houver mudanças repentinas e inesperadas, uma parte do empreendimento pode morrer e a outra parte se compõe com outros parceiros.
O modelo APL brasileiro é híbrido, composto pelas figuras do empreendedor, do governo e de entidades de fomento e tecnológicas. Alguns exemplos são o pólo de moda íntima de Nova Friburgo e o pólo de moda praia em Cabo Frio. Segundo Renato Regazzi, gerente da Área de Desenvolvimento Industrial e de Setores de Base Tecnológica do Sebrae-RJ, já existem mais de 600 casos no Brasil. Minas Gerais se tornou referência no setor moveleiro, Campina Grande (PB) se destaca em calçados, há um setor de móveis em Paragominas (PA) alimentado com sobras de madeira. Temos também a cachaça de Paraty, a pinga mineira etc. O importante é ser solidário, singular e universal.
Agência Ambiente Energia - Em termos gerais é possível ter esperanças? Está surgindo uma nova economia?
Elias Fajardo - No final do século XX e no início do século XXI, começou a se consolidar uma nova economia, mais ágil e adequada às realidades e aos tempos contemporâneos, mais preocupada com o ser humano do que com índices e números abstratos. Ela se propõe a levar em conta não apenas o interesse dos indivíduos, mas a colaboração e a solidariedade entre pessoas e grupos. E enfatiza muito mais a distribuição da riqueza e da renda do que o crescimento da produção.
Conforme as pessoas adotam novas formas de vida, assim como novos valores, crenças, estruturas familiares, sistemas políticos, expressões de arte e cultura, também vão sendo engendradas novas expressões de riquezas e de sistemas econômicos. Passamos da economia do arado para a da linha de montagem e, agora, estamos adentrando a economia da era do computador, caracterizada pela supremacia do conhecimento.
O resultado disso tudo é uma mudança expressiva e profunda. Manuel Castells, em seu livro A sociedade em rede, define essa nova etapa da economia capitalista como "informacional". Nela a produtividade das empresas, das regiões ou mesmo das nações depende basicamente de sua capacidade de gerar, processar e aplicar de forma eficiente a informação baseada em conhecimentos.
Portanto, a tecnologia da informação e da comunicação está na base da economia do conhecimento, à medida que permite armazenar, processar e fazer circular rapidamente e com baixo custo um número de dados cada vez maior. Com isso, vem se desenvolvendo uma tendência a empregar a tecnologia como instrumento de inclusão social. Neste caso, talvez se possa falar até num casamento entre os conceitos de economia do conhecimento e de economia da solidariedade.