segunda, 01 de março de 2004
Viagem e Turismo Ed. 101
"Antônio", um dos muitos peões da fazenda, cumpria sua rotina: acordou cedo, encarou o sol forte, juntou os cachorros e saiu pra caçar. Naquela época, não existia em Bonito a conveniência de açougues, muito menos especializados em carne de caça, e as refeições eram garantidas pela captura de um veado, paca, capivara ou qualquer outro bicho que estivesse pelas redondezas quando os cães saíssem com a missão de correr atrás do almoço do dia. Mas, naquela manhã, aconteceu algo inusitado: não havia nenhum bicho aonde os cachorros levaram Antônio. Existia só um buraco no chão: era evidente que o almoço tinha ido ribanceira abaixo. A curiosidade (sempre ela) fez Antônio dar uma espiadinha na abertura na terra que, mesmo trabalhando há três anos naquela fazenda, não conhecia. E não é que o negócio era bonito?!
E assim, por acaso, no verão de 1976, foi descoberta a atração natural mais espetacular de Bonito: o Abismo Anhumas. Na verdade, não se sabe o nome do peão. O que se sabe é que essa descoberta foi o início da trajetória bem-sucedida do destino ecoturístico preferido dos leitores de Viagem e Turismo.
Tal qual o Anhumas, a maioria das cachoeiras, dos rios e seus peixes imensos e tranqüilos, das trilhas no meio da mata, dos tucanos e araras de Bonito fica em propriedades particulares. À primeira vista, isso parece ruim: "E se os fazendeiros resolverem transformar toda esta maravilha em pasto?" É aqui que começa a grande diferença entre esse e os outros destinos de ecoturismo do Brasil: os projetos ecológicos trazem muito mais dinheiro do que as atividades predatórias ou os rebanhos. Por quê? Fácil: é muito mais barato montar uma infra-estrutura básica (receptivo para os turistas, restaurante, banheiros) e aproveitar as belezas que a natureza colocou dentro da sua fazenda, do que manter uma equipe para cuidar do gado, arcar com custos de vacina etc. O interesse pela implementação de um ecoturismo sério e estruturado começou pelo bolso e terminou criando algo de valor inestimável: a consciência de que, preservando a natureza, ganhamos muito mais do que acabando com ela.
Só mais um pouquinho...
O aeroporto de Campo Grande, MS, é a parada obrigatória de quem vai para a região da Serra da Bodoquena. Há tempos está prometido um aeroporto em Bonito, daqueles exclusivos para voôs fretados (como existe em Lençóis, na Bahia, e em Barreirinhas, no Maranhão). As pistas já estão prontas, mas ninguém sabe quando o restante será construído. Enquanto isso, o único meio de transporte entre Campo Grande e Bonito é o velho e bom automóvel. Os 300 quilômetros que separam as duas cidades parecem eternos, mas nem são tão massacrantes quando se está dentro de uma espaçosa van com ar-condicionado poderoso. Os intermináveis pastos se estendem por todo o caminho. A terra vermelha se acumula nos vidros. Bonito parece não chegar nunca. Mas chega. Geralmente no final do dia, depois de algumas horas de vôo, outras de estrada, mas chega. E será no dia seguinte, depois da primeira noite silenciosa e do primeiro café da manhã das suas férias, que você vai começar a descobrir por que a cidade tem o nome que tem.
Assim, não!
Quando me viu olhar, abismada, os pilares do hall de entrada no hotel imensas aroeiras centenárias , o funcionário do Wetega Hotel (lê-se "ueterrá"), um dos mais modernos e chiques de Bonito, fez questão de dizer: "Estas árvores têm mais de cinco séculos". Seria mais correto dizer que elas tinham quinhentos anos...
A informação soou meio surreal aos meus ouvidos: como alguém, ainda mais em Bonito, pode se gabar disso? "Ah, mas foi tudo autorizado pelo Ibama." Tudo bem, mas não muda o fato de que a escolha decorativa dos proprietários foi sofrível.
...e cá estamos nós!
Sem tirar o mérito ou acabar com o charme, Bonito não se chama assim porque é bonita. O nome vem da antiga fazenda, a maior da região, que se chamava "Rincão Bonito". Acabou-se o latifúndio, ficou a alcunha. Uma vez esclarecida a nomenclatura, vamos ao que interessa: Bonito é mesmo maravilhoso? É. Comecei a perceber isso no meu primeiro passeio, às 8h da manhã de um domingo, na Gruta do Lazo Azul. E olha que é difícil achar algo lindo às 8h da manhã, muito menos num domingo.
A luz entrava tímida por uma das fendas da rocha. Nós seguíamos os passos e a voz do guia e ficávamos boquiabertos com as dimensões da caverna, as estalactites, a sensação de frescor e umidade. A cada metro que descíamos na trilha, a cor do lago era alterada pelo ângulo do raio de sol: ia de verde a azul intenso, quase anil. Aqui cabe uma interferência, nada romântica, mas em prol da verdade: a água não é azul. Se você pegasse um copo de água no meio do lago (não faça isso porque é proibido entrar, viu?), ela seria transparente. A cor que se vê é causada pela soma de dois fatores: por ser rica em calcário, que tem a característica de refratar a luz em tons de azul, e pela ilusão de ótica que o sol, ao bater dentro da caverna, causa. Quem disse que esse dado altera a beleza do lugar? De forma alguma! A Gruta Azul merece mesmo ser um dos cartões-postais mais conhecidos de Bonito.
Beleza socializada
Bonito leva toda a fama pelo estonteante cenário natural, mas justiça tem de ser feita: não é só nessa cidade que se encontram as paisagens maravilhosas que você vê nestas páginas. Ela fica numa região chamada Serra da Bodoquena, que inclui os municípios de Jardim, Porto Murtinho e Bodoquena. Essa dita serra, que, na verdade, é um planalto, foi formada há cerca de 550 milhões de anos, quando o planeta sofreu um grande movimento nas camadas internas da Terra, que se reorganizaram. Essa movimentação foi a responsável pela formação das dezenas de cavernas, erosões e cachoeiras que fazem, até hoje, a diversão de milhares de turistas.
A Cachoeira do Aquidaban é um ótimo exemplo disso: são 120 metros de queda, uma das mais altas da região, de onde se pode avistar toda a Serra da Bodoquena e ter uma noção da grandeza de sua área de 300 quilômetros de extensão por 60 quilômetros de largura.Ficou curioso pra saber o que NÃO fica em Bonito? O Boca da Onça Ecotour, o Rio do Peixe e a citada Cachoeira do Aquidaban, por exemplo, são em Bodoquena. A Estância Ecológica Rio da Prata, em Jardim. Mas não se preocupe, porque por lá eles não dão a mínima importância a essa questão de nomenclatura: o que importa mesmo é fazer você se sentir em casa, seja em qual cidade for.
30/08/2023 - 00:00