imagem do onda

Gente Pantaneira, Crônicas de sua História


Texto extraído do livro de Abílio Leite de Barros

“A salubridade da zona pantaneira tem sido objeto de admiração de médicos e sanitaristas que nos visitam. Nunca houve por aqui doenças endêmicas, mesmo com uso de águas paradas e, às vezes, de aspecto desagradável, nos períodos de seca. Um velho piloto de táxi aéreo que se aposentou fazendo transporte no Pantanal dizia que, em sua história profissional, havia registrado viagens de alguns vaqueiros acidentados, mas não se lembrava de doentes. Acre ditava que nessa variação de zero a 40 graus na temperatura pantaneira, os micróbios do inverno morriam no verão e vice-versa. Li essa bizarra afirmação, nos mesmos termos, dita por viajante no Rio Grande do Sul, a respeito da surpreendente saúde do vaqueiro gaúcho. O homem dos pampas tem enormes semelhanças com o pantaneiro. Quanto à saúde, parece-me que essa semelhança vem da identidade de suas preferências alimentares — ambos devora dores da proteína vermelha.

A carne, além de seu aspecto nutricional, está ligada à vida do vaqueiro pantaneiro por outros valores. Comer carne, para ele, é motivo de orgulho e sua ausência nas refeições é máxima desconsideração. Lembro-me de um pantaneiro contando, com zombaria e desprezo, a sua passagem por uma fazenda serrana onde se tomava coalhada com queijo, de quebra-torto, e se almoçava arroz com ovo — suprema humilhação. O próprio patrão pantaneiro, se faz regulador de consumo de carne, costuma ser objeto de censuras, veladas ou expressas. Expressas, quase sempre, com o abando no do serviço da propriedade.

A carneada na fazenda parece-me uma espécie de ritual.

Um ritual de exaltação à vida. A morte do animal, no ideário do vaqueiro, está ligada à sua sobrevivência, bem-estar e gratificações psicológicas. A insensibilidade com que ele sangra a rês, a intimidade com que se mistura ao sangue, carnes e vísceras, está envolta em ritos de alegria e prazer: gritos, risos e as sonoras gargalhadas.
(...)
Mal aprendem a mastigação, as crianças pantaneiras começam a puxar pedaços de carne entre dentes mal nascidos. Crescem com o costume de três refeições de carne. No passado, quando madruga das maiores se faziam necessárias, assava-se algum surtum ou picanha, uma quarta refeição, para esperar o almocinho ou quebra-torto, também de carne. Ingerindo pouquíssimos vegetais, pois não comem verduras, com essa dieta, à luz de informações de alguns nutricionistas, em vez de saúde, essa gente pantaneira deveria estar tomada de intoxicações e distúrbios orgânicos. A esse respeito, lembro-me de velho vaqueiro, já virtualmente de dentes gastos (gastos de comer carne alheia, dizia jocosamente), cortando um granito assado, de colesterol exposto e zombando de um médico da cidade que lhe aconselhava moderação no churrasco e nas gorduras. Ria, mostrando a carne gorda — “é aqui que está a vitamina”. Tinha lá suas razões, ao menos dentro do seu estreito campo conceitual em que o magro simboliza fraqueza, pois todo animal sadio é gordo. Apesar desses possíveis exageros, nunca vi vaqueiro ter enfarte do miocárdio. Evidente que sua vida esportiva compensa os abusos.

...Dias antes das grandes festas nas fazendas, as mulheres preparavam os doces de leite, goiaba, caju ou mangaba em sucessivas tachadas. De véspera, também já estavam prontas as farinhas, polvilhos e apetrechos para o bolo de queijo, de arroz e a miséria de dindinha, servidos quentinhos com chá de mate queimado. As novilhas gordas para o churrasco também já estavam escolhidas e presas. Esses preparativos costumavam ser feitos em ambiente já festivo. A noite, quase sempre ensaiavam um bailezinho preparatório.

(...)
Nos dias de festa, o braseiro de angico era permanente, com os espetos de carne, fartos para todos. A novilha recém-desmamada ou ainda de leite faz o churrasco mais típico dos pantaneiros — carne tenta e saborosa. Ao entrar a noite, havia a reza em respeito aos santos. Rápidas orações em frente ao oratório da família, puxadas pela dona da casa ou alguma rezadeira mais entendida do mister.

Atendidos os santos, começava o baile. Na casa-grande da fazenda preparava-se um salão, que seria para a gente de primeira. Separa do, mais animado e mais típico era o chamado baile do pessoal. Qualquer rancho ou empalhiçado com um lampião pendurado na cumeeira era suficiente. Ao redor da sala, junto às paredes, compridos bancos deviam abrigar as damas. Num canto, os tocadores. Do lado de fora, no escuro, os homens, sempre em maioria.”