quinta, 26 de agosto de 2010
Utilização econômica da fauna silvestre no Brasil: O exemplo do jacaré-do-pantanal
Por: Guilherme de Miranda Mourão
As primeiras informações estatísticas sobre o uso econômico das fauna silvestre no Brasil, só começaram a aparecer nos anuários estatísticos do IBGE, a partir de 1956. Desta data até 1969, o Brasil exportou 17,9 mil toneladas de peles de animais silvestres de várias espécies, gerando cerca de 290 milhões de dólares ou 26,7 milhões de dólares por ano (valores corrigidos para o ano base de 1995, pelo Consumer Price Index for all urban consumers/Department of Labor, Bureau of Labor Statistics, USA). O grupo de animais que produziu mais riqueza foi o de jacarés, com cerca de 6,6 milhões de dólares/ano.
Este artigo examina como a política brasileira, determinada pela lei 5.197/67, sancionada pelo então Presidente da República, General Castelo Branco, influenciou a atividade de produção e comercialização de peles de animais silvestres ênfase do jacaré-do-pantanal (caiman Crocodilus yacara).
Na década de 80, o preço das peles estavam em alta no mercado internacional. A cada ano, centenas de milhares de peles saíam ilegalmente do Pantanal para suprir grande parte do mercado internacional. A opinião pública pressionava as autoridades para conterem a caça clandestina. A criação de jacarés entrou na moda, com a imprensa alardeando lucros fáceis e exaltando a criação como forma de conter a caça clandestina.
Em fevereiro de 1990, o Ibama publicou portaria específica para regulamentar a produção de jacaré-do-pantanal (portaria nº 126), determinando cotas de extração de ovos em ninhos encontrados na natureza e estabelecendo o modelo em ciclo aberto como o modelo oficial para o jacaré-do-pantanal. Animados, vários produtores se credenciaram junto ao Ibama, obtendo licenças para operar criadouros comerciais. No Pantanal norte, houve uma tendência de os fazendeiros se associarem em cooperativas como a Tecnocaiman na região de Poconé e a Cocrijapan em Cárceres. Estima-se que entre 1992 e 1994 estas duas cooperativas tenham extraído mais de 200 mil ovos de habitats naturais do Pantanal (Coutinho e colaboradores, Ciência e Cultura, vol. 50 nº 1, p. 60-64).
No Pantanal sul não houve formação de cooperativas e, em geral, os criadouros operaram com menor número de ovos, embora alguns apresentassem uso relativamente mais alto de tecnologia. O clima de otimismo em relação a política de criadouros de jacarés como forma de suprir o mercado e, simultaneamente, conter a caça clandestina chegou ao ápice em 1992, quando a atividade dos caçadores virtualmente cessou em todo o Pantanal. O interessante é que este súbito fim da caça ilegal não coincidiu com a comercialização de grandes volumes de peles legalmente produzidas em criadouros brasileiros, como se poderia esperar, mas sim com o aumento de uma moda avessa ao uso de produtos provenientes de animais silvestres. Essa moda ecologicamente correta, impulsionada pela realização da Rio 92, determinou baixas espetaculares nos preços das peles de crocodilianos no mercado internacional, tendência que ainda perdura. Adicionalmente, os protecionistas americanos incluíram o jacaré-do-pantanal em seu Ato das Espécie Ameaçadas (US Endangered Species Act), impondo restrições ao comércio de produtos desta espécie em território americano. Se a real motivação para este ato foi a preocupação com a preservação do jacaré-do-pantanal, ou a proteção do mercado interno para sua própria produção de peles de aligatores, ainda é uma questão que gera discussões. De qualquer forma, isto dificultou ainda mais a vida dos produtores brasileiros.
A crise dos criadouros - Em todo o Pantanal, os principais criadouros paralisaram ou reduziram suas atividades. No Pantanal norte, as cooperativas de Cárceres e de Poconé não coletam ovos desde 1995. Até 1996, a TecnoCaiman tinha cerca de 30 mil peles cruas e 10 mil peles curtidas estocadas no Brasil, além de quase 50 mil peles curtidas encalhadas no Panamá, a espera de compradores.
No Pantanal sul, dos 13 criadouros registrados, apenas 3 solicitaram coleta de ovos em 1997 e apenas um em 1998. Somente mil peles provenientes de criadouros localizados em Mato Grosso do Sul foram comercializadas até agora, e existem milhares de peles estocadas. Por outro lado, pelo menos um criadouro tem manufaturado, no Brasil, os produtos acabados (bolsas, sapatos, cintos, etc) de boa qualidade. Esta é uma notícia animadora, porque até pouco tempo atrás, havia o preconceito de que não dispúnhamos da tecnologia de beneficiamento de peles de jacarés, que envolve complicadas etapas ácidas para remoção de estruturas ósseas existentes em suas peles (osteodermas). Ainda no Pantanal Sul, pelo menos um criadouro vinha tendo sucesso relativo com vendas da carne, mas, aparentemente, mesmo este está encerrando ou reduzindo suas atividades e não pediu autorização para coleta de ovos em 1998.
Resultados da política determinada pela lei 5.197/67 A lei 5.197/67 por si só não parece ter sido eficaz em proteger a fauna brasileira. Espécies que tinham importância comercial, como o jacaré-do-pantanal continuaram a ser caçados ilegalmente, enquanto houve mercado para suas peles. A riqueza produzida com a explotação deste recurso foi apropriada por contrabandistas inescrupulosos e nenhuma parcela foi direcionada para o aperfeiçoamento dos sistemas de utilização, gerenciamento e merchandising do recurso. O efeito de longo prazo mais sensível parece ter sido levar o Brasil a perda da posição de liderança nas exportações de peles de crocodilianos no cenário internacional. Na maior parte da década de sessenta o Brasil foi o principal exportador de peles de jacarés, comercializando centenas de milhares de peles por ano, e atingindo o máximo de 758 mil peles exportadas em 1967. Não há informação disponível sobre o número de peles exportadas no período que se estende de 1970 ao princípio da década de 90. Fontes ligadas a organismo internacionais como a Convertion on International Trade in Endangered Species of Wild Fajuna and Flora - CITES e a Traffic reportam que os números nas décadas de setentas e oitentas tenham sido em geral altos, na casa de várias centenas de milhares de peles, podendo ter chegado a casa de 1 milhão de peles ao ano.
Existe muita incerteza, entretanto, quanto aos valores reais. De qualquer forma, no início dos anos noventas, nossas exportações de peles de jacarés estavam reduzidas há poucas centenas de peles. Primeiro, a Venezuela manejando as populações naturais de jacarés dos Llanos (Caiman crocodilus crocodilus), e depois a Colômbia com animais provenientes de criadouros (principalmente Caiman crocodilus fuscus) tomaram a liderança tradicionalmente ocupada pelo Brasil no comércio mundial.
O papel da caça comercial na conservação - Muitos pesquisadores têm sugerido que utilizar uma população silvestre através de uma caça controlada, pode ser um meio eficaz de protegê-la. Parece um paradoxo: vamos estar matando para proteger? Na verdade, este conceito tem provocado controvérsia em muitos países do mundo, mas há pelo menos dois motivos para se acreditar que o manejo com finalidade econômica (ou caça comercial criteriosa) pode desempenhar um papel importante na conservação da vida silvestre no Brasil.
Primeiro, o manejo pressupõe o monitoramento da população explotada, possivelmente executado com recursos gerados pela própria atividade. Devido à escassez de recursos disponíveis para pesquisa básica e para a conservação, é muito difícil imaginar que o Brasil seja capaz de monitorar suas populações silvestres, se não houver um retorno econômico diretamente associado com esta atividade.
Para o Brasil, esta tarefa é ainda mais pesada, considerando-se a grande extensão territorial, a mega-diversidade de nossos biomas e a incapacidade de nossas instituições de pesquisa e dos órgãos governamentais de gerência ambiental para monitorar toda a fauna brasileira a fundo perdido. A ausência de monitoramento é perigosa, porque algumas espécies podem ser extintas antes que a sociedade se dê conta do problema. Por exemplo, a sociedade brasileira só tomou conhecimento de que a ararinha azul (Cyanopsitta spixii) representava um problema de conservação, quando a espécie já estava ecologicamente extinta (i.e. só restava um indivíduo no habitat natural).
Se tivesse havido monitoramento das populações naturais da ararinha azul e a sociedade alertada a tempo, talvez o destino da espécie tivesse sido menos desafortunado. Segundo, usualmente quando se valoriza uma população silvestre, valoriza-se os habitats naturais em que a espécie ocorre, e também são os habitats de inúmeras outras espécies destituídas de valor econômico imediato, mas que igualmente se beneficiarão da conservação destes habitats.
Em um país onde até há pouco tempo, matar uma marrequinha para saciar a fome era crime inafiançável mas, desmatar áreas extensas de cerrados e florestas para formar pastos ou produzir lenha era visto com naturalidade, qualquer incentivo para se conservar a integridade destes habitats, deve ser louvado. Estudos recentes indicam que a taxa de desmatamento no Pantanal são proporcionalmente muito mais altas do que na Amazônia. É claro que apenas uma pequena minoria das espécies silvestres são apropriadas para serem explotadas diretamente da natureza. Espécies apropriadas para explotação devem apresentar altas taxas de reprodução e distribuição geográfica ampla, entre outras características. Espécies como o jacaré-do-pantanal, a capivara (Hydrochoerus hydrochaeris) e o porco-monteiro, como é chamado no Pantanal o porco asselvajado, são bons candidatos.
Espécies com baixas taxas de crescimento populacional ou com distribuição geográfica restrita e fragmentada, como as lontras (Lutra spp) e a ariranha (Pteronura brasiliensis) não devem ser alvos de manejo com finalidade econômica. É importante frisar que, mesmos nos casos de espécies apropriadas, é preciso que os órgãos encarregados da gerência do recurso, o Ibama e as Secretarias Estaduais de Meio Ambiente, devem ter sempre a prerrogativa de alterar os critérios de explotação, sempre que isto for necessário para conservação das populações silvestres e para a sustentabilidade da atividade.
Para finalizar, devemos nos perguntar: podemos esquecer os jacarés, enquanto produto? Certamente podemos diversificar os sub-produtos (carne, souvenir, turismo) oriundos dos jacarés, para agregar mais valor ao produto e eventualmente viabilizar alguns criadouros. Entretanto, a única alternativa que parece ser capaz de ir na direção de devolver ao Brasil uma condição de destaque no mercado internacional de produtos oriundos de animais silvestres é adequar a legislação brasileira para permitir o manejo da fauna silvestre, ou seja, a caça comercial criteriosa, monitorada, fiscalizada, e cientificamente embasada.
Guilherme de Miranda Mourão (gui@cpap.embrapa.br) é pesquisador de fauna silvestre da Embrapa Pantanal (http://www.cpap.embrapa.br) - Corumbá (MS).
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Embrapa Pantanal, Coluna de publicação de artigos da Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias do Pantanal.