quinta, 07 de agosto de 2003
Jornal O Globo
A exuberância do Pantanal foi apresentada em 1990 para a grande massa de brasileiros pela novela homônima, de Benedito Ruy Barbosa. Passados 13 anos, muita coisa mudou na região. Áreas como a Gruta do Lago Azul, em Bonito, tiveram de ser preservadas para poderem continuar com a mesma beleza de antes. Entretanto, parece que a diferença mais radical está no fluxo de turistas. O editor Mario Toledo e os repórteres Suzana Velasco e Fernando Quevedo foram conferir que os brasileiros estão cada vez mais descobrindo o Pantanal sul-matogrossense. Se antes a proporção de visitantes estrangeiros era de sete para um brasileiro, agora está em meio a meio. Todos vão buscar uma das regiões mais ricas do país, onde um dia nunca é igual ao outro.
Mato Grosso do Sul, estado pantaneiro
Suzana Velasco
Enviada especial, Campo Grande
O imaginário Mar de Xaraés, que teria originado o Pantanal, é na verdade a maior área úmida continental do planeta, com cerca de 210 mil quilômetros quadrados no Brasil, na Bolívia e no Paraguai. No Mato Grosso do Sul estão 65% dessa imensidão de terras alagadas, banhadas pela Bacia do Alto Paraguai. Imensidão que revela, além das centenas de espécies de animais e de plantas, preciosidades que não podem ser mensuradas: uma história que o nativo pantaneiro conta, uma roda de viola no fim do dia, um pássaro que pousa repentinamente. E, no sul do estado, a transparência das águas de Bonito e Bodoquena é lente de aumento para a já grandiosa natureza.
Ao passear de barco no Pantanal, peça para desligarem o motor e deslize rio abaixo, apenas com a ajuda do remo. É assim, vagarosamente, num passeio que pode durar até quatro horas, que o visitante consegue aproveitar tanta variedade de fauna e flora. Além da lentidão, não usar o motor é ainda um presente às águas, porque não há qualquer risco de vazamento de combustível. É por esse motivo que muitos barcos no Pantanal hoje têm motor elétrico, a serviço da ecologia.
Para o turista, o presente é também para os ouvidos. Sem o barulho do motor, ouvem-se os jacarés ? estrelas pantaneiras ? mergulhando nas águas e o canto dos pássaros, que vai sendo percebido aos poucos por gente da cidade, tão desabituada com os ruídos do mato.
Mas o legítimo pantaneiro reconhece de longe os barulhos e as cores das 652 espécies de aves encontradas no Pantanal, diferenciando o grito agudo do gavião belo do canto da saracura, que, como dizem por lá, indica que vai chover. Sons que poderiam passar despercebidos, se não fosse o olhar local habituado à natureza.
É assim que se entende o porquê da frase que se costuma ouvir na região, estampada até em camisetas: ?No Pantanal, siga o pantaneiro?. Em algumas fazendas, os nativos trabalham em conjunto com guias especializados, avistando os animais e contando histórias locais.
? O Pantanal é lindo, principalmente as pessoas daqui, que nos fazem sentir parte de uma família. O guia foi extraordinário ? conta o australiano Andrew Eastwood, referindo-se ao pantaneiro Carlos Antônio Soares, da Pousada Rio Vermelho, no Pantanal do Abobral, região tão plana que é alagada mesmo na seca.
Pantanal do Abobral? Sim, são dez ?pantanais? em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, cada um com características específicas de relevo e fauna, e vegetação típica da Amazônia, do cerrado, do Chaco e até da caatinga.
No Hotel Recanto Barra Mansa, onde todos os guias são pantaneiros, o turista passeia nas límpidas águas do Rio Negro, navegáveis o ano todo ? durante a seca ele fica raso, mas não seca ? e encontra pássaros como o biguá, a biguatinga e o colorido martim-pescador, que se alimentam de algumas das 264 espécies de peixes da região. Afluente do Rio Paraguai, o Negro é um dos mais preservados do Pantanal, devido a seu difícil acesso.
? O pior pescador daqui é o jacaré. Ele não mergulha para pescar. Fica parado se fingindo de morto e esperando o peixe chegar, para dar o bote de lado ? explica Daniel Rondon, que administra o hotel, no Pantanal do Rio Negro.
Segundo o biólogo Ricardo Soares, que trabalha na Pousada Araraúna, para que o turista tenha a chance de ver mais e diferentes animais deve fazer o passeio de manhã cedo ou à tardinha, horários em que o sol não é tão forte ? já que, mesmo no inverno, a fauna se recolhe para se proteger do calor intenso do sol. Se o rio tem margens largas como o Miranda, precisa-se de ainda mais atenção para ver os animais, às vezes escondidos em meio à vegetação, como o pássaro arapapá e o bugio (espécie de macaco), que raramente desce ao solo.
Mas não se preocupe, pois os jacarés estão em toda parte, imóveis, com a cabeça empinada e os olhos arregalados e fixos em algum ponto que desconhecemos. Sem precisar de sorte, 30 deles são vistos em apenas cinco minutos.
? A mata ciliar, que fica às margens dos rios, impede seu assoreamento, pois sustenta os barrancos. Os frutos caem das árvores e alimentam os peixes ? explica Ricardo, durante passeio pelo Rio Correntoso, também no Pantanal do Rio Negro.
Profundo e de leito bem definido, o Correntoso tem trechos margeados por cambarás, árvores típicas de regiões alagadas, que roubam a cena dos tradicionais aguapés da beira dos rios. Seu amarelo se mistura com as cores dos pássaros, como o cor-de-rosa do colhereiro, com bico em forma de colher. Além das aves, podem-se ver capivaras ? os maiores roedores do mundo ? e ariranhas.
O espetáculo começa antes de o sol raiar
O dia no Pantanal começa cedo. E ele, o dia, será sempre anunciado por um personagem que vai acompanhá-lo durante toda a sua estada: o arancuã. Com o seu canto, que os pantaneiros imitam dizendo ?que-ro-ca-sá?, ele vai tirar você da cama antes mesmo de o sol raiar. O arancuã canta sem parar até que o sol chegue no seu ninho. Quando isto acontece, ele bate as asas, sai do galho e o seu dia começa.
Depois do espetáculo do arancuã, que será repetido todas as manhãs, chega a hora do café da manhã que é servido em conjunto pois as atividades geralmente são feitas por todos os hóspedes, ao mesmo tempo.
Em terra, os programas durante o dia são divididos em cavalgadas, caminhadas ou safáris fotográficos. O grupo sai logo depois do café da manhã e volta antes do almoço. Depois dá uma bela descansada para fazer outro programa em terra por volta das 15h.
Durante as três horas de passeio, os turistas assistem a um desfile de animais. Um desfile real, sem as jaulas de um zoológico. Embora ameaçada de extinção, a arara-azul é figurinha fácil nas cavalgadas e caminhadas pelas fazendas.
Capivaras e porcos-do-mato também aparecem bastante, mesmo sem ter os projetos de preservação das araras-azuis.
Difícil mesmo é ver a onça-pintada, a principal estrela pantaneira. Se você não tiver a sorte de ficar frente a frente com ela, com certeza vai levar de recordação a história de ter passado pelo esqueleto de um animal, durante uma caminhada. As onças-pintadas matam cerca de 50 animais por mês. É a lei de sobrevivência da selva.
O jaburu, ou tuiuiú, surpreende pelo tamanho, bem maior do que aparenta em filmes e fotografias. O tamanduá também é grande e pode ser visto cruzando as estradas. Aliás, uma das placas de sinalização existentes nas estradas do Mato Grosso alertam os motoristas para dirigir com cuidado pois muitos animais, como o tamanduá, cruzam o asfalto, principalmente durante a noite.
Urubu-preto, jacaré, garça, garça-branca e macaco-prego serão parte da lista de animais que você viu. ( Mario Toledo).
Na seca, o acesso à região é mais fácil
Antes de ir ao Pantanal, é essencial saber um pouco sobre os períodos de seca (junho a outubro) e cheia (novembro a maio), que dão cenários diversos à região.
Durante a cheia, as chuvas descem dos planaltos que rodeiam a planície pantaneira. O Rio Paraguai, de baixa declividade, transborda, formando baías, vazantes e corixos de águas rasas, no solo poroso que não consegue absorver tanta água. Água que espalha microorganismos, fertilizando as terras e criando condições para a riqueza de ecossistemas do Pantanal.
Durante esse período, os animais se refugiam nas ?cordilheiras? ? que não são serras, e sim elevações de entre dois e três metros ? e os peixes sobem os rios para a desova, no período denominado piracema. Na cheia, só de avião se chega em grande parte das fazendas.
? O vôo no Pantanal é muito bonito. Os mono e bimotores chegam a voar com segurança a apenas cem metros de altitude. Não há redes de alta tensão nem antenas ? explica Wilson Galeano, piloto há 23 anos.
Já na seca, quando as águas baixam, o acesso ao Pantanal torna-se mais simples. Nessa época, a fauna pode ser vista mais de perto. As vazantes secam e os peixes são mais facilmente fisgados; se na cheia as piranhas são sobretudo predadores, na seca são alimento para aves e jacarés. Beneficiados são os animais típicos do cerrado, como emas, tatus e tamanduás-bandeira.
As temporadas pantaneiras também se refletem nos tipos de Pantanal. Os do Abobral e do Nabileque, de terras mais baixas, são os primeiros atingidos pelas chuvas.
? Aqui recebemos águas de Coxim, Bonito e Aquidauana, que vão para o Rio Paraguai e depois para o oceano. Se você ouvir dizer que este ano o Pantanal não vai encher e quiser ver água, pode vir para cá ? diz o legítimo pantaneiro Juvenal Sintra Lopes, o Neto, referindo-se ao Pantanal do Abobral.
Na Serra da Bodoquena, o desafio é vencer o medo e se aventurar no rapel
Ao sul do estado fica a Serra da Bodoquena ? na verdade um planalto ?, que abrange os municípios de Bonito e Bodoquena e parte de Jardim e Porto Murtinho. A 55 quilômetros de Bonito e a 34 de Bodoquena está o Boca da Onça Ecotur, com cachoeiras, trilhas, rapel e banho no Rio Salobra, assim chamado devido ao magnésio de suas águas, que dá a elas salinidade.
Quem quiser praticar rapel tem antes que treinar em uma torre de sete metros, onde os guias explicam como usar o equipamento. E quem achar que a torre já causou fortes emoções que se prepare. São 90 metros de descida num paredão de calcário, a partir de uma plataforma de onde os menos corajosos podem avistar o Vale do Rio Salobra e se animar para um mergulho em suas águas esverdeadas, onde, devido à fragilidade de seu ecossistema, não é permitida a pesca, com exceção da científica.
Mas quem desce pelas cordas do rapel percebe que o medo maior é mesmo na hora de soltar as pernas e se pendurar. Depois disso, a segurança do equipamento permite que o esportista controle quando e o quanto quer descer, dando-lhe a possibilidade de atingir o solo devagarinho, apreciando a vista, ou mais rápido, em ritmo de aventura.
Depois do esforço, a recompensa. Alguns degraus após o fim do rapel, os 156 metros da maior cachoeira do Mato Grosso do Sul esperam o aventureiro para devolver-lhe o fôlego. Embaixo da Boca da Onça ? assim chamada por causa do formato de cara de onça na rocha ?, há uma piscina natural de até três metros e meio de profundidade, onde não se recomenda mergulho, devido à grande quantidade de rochas.
? O antigo dono não tinha noção de que aqui havia uma cachoeira tão grande. Quando comprei o terreno, estava tudo sujo. Eu só limpei, não desmatei. Toda a madeira para a construção da casa veio do Norte ? conta o proprietário da fazenda, Haroldo Barbosa.
Há dez cachoeiras além da Boca da Onça, porém apenas mais uma onde se pode tomar banho: Poço da Lontra, de cinco metros. As outras, como a Cachoeira do Fantasma e a Buraco do Macaco, podem ser admiradas ao longo da trilha ecológica de quatro quilômetros, bem definida por deques e degraus de madeira.
Depois de um dia cheio de atividades, a melhor opção é nadar nas duas piscinas de águas correntes, ao lado de pintados, e fazer hidromassagem. O local ainda pretende, até o ano que vem, oferecer flutuação no Rio Salobra e passeios de bicicleta.
Quem não se contentar com as cachoeiras de Bodoquena pode visitar o Parque das Cachoeiras, a 17 quilômetros do Centro de Bonito. Lá, em passeio de cerca de três horas, o turista faz trilha, onde vê macacos-prego e cotias, e, na volta, visita grutas e seis cachoeiras formadas por tufas calcárias, com piscinas naturais. Precisa de mais alguma coisa?
Programa noturno para ver jacarés
À noite, nem todas as onças são pardas. Há as pintadas também. Ver o animal é o prêmio de ouro para quem vai ao Pantanal. Prêmio que poucos recebem, sem méritos, pois não há fórmula para que a onça seja vista durante a focagem noturna, oferecida por quase todas as fazendas da região.
Durante o passeio, o guia usa o farolete, uma grande lanterna que foca pontos da mata, procurando, além de onças, outros animais de hábitos noturnos, como a lontra e o lobo-guará. Se é raro ver onças ? não há garantias nem com o ?esturrador?, que imita seu som ?, a noite revela os olhos vermelhos dos jacarés e famílias de capivaras mergulhando nas águas.
Os turistas ficam num carro aberto e geralmente usam capas impermeáveis, pois a noite é gelada. Durante a focagem, que dura de duas a três horas, passam por áreas cada vez mais abertas, e, conseqüentemente, mais frias, mesmo que de dia o calor tenha sido grande. No inverno, a temperatura pode chegar a zero grau à noite. Na Pousada Rio Vermelho e no Passo do Lontra Parque Hotel, o passeio pode ainda ser feito de barco, respectivamente nos rios Vermelho e Miranda.
Mas a noite tem mais do que focagem. Na Pousada Araraúna, os guias nativos Arnaldo Silvério e Celso Vicente da Silva formam a dupla de violão e sanfona, que, em celebração pela temporada na região, anima a última noite dos turistas, tocando música sertaneja, xote e polca paraguaia, e contando ?causos? estranhos e assustadores sobre onças e sacis.
Na Fazenda São Francisco, quando o sol se põe, os hóspedes fazem o ?happy hour pantaneiro?, com caldo de piranha. O local também oferece churrasco em volta da fogueira, ideal para as noites frias de inverno, no céu sempre estrelado, livre da poluição das cidades.
Bonito? Que bonito nada, é lindo!
O nome já diz muito, mas não tudo. A beleza de Bonito não é uma beleza qualquer. Ao sul do Pantanal, a 278 km de Campo Grande, as águas dos rios, cachoeiras e lagos refletem o que Bonito tem de mais bonito.
A cidade não está no Pantanal, mas na última década tornou-se caminho obrigatório para quem vai à região sul-matogrossense. O turismo, que não pára de crescer, tornou impecável a infra-estrutura das atividades, a maior parte delas em propriedades particulares.
Uma das já clássicas atrações turísticas é a Reserva Ecológica Baía Bonita, com flutuação ( snorkeling ) em seu aquário natural. Lá, o visitante é preparado antes de se deparar com o mundo debaixo d?água: snorkel , roupa de neoprene para espantar o frio ? as águas do Baía Bonita têm em média 23 graus ? , sandálias especiais e coletes salva-vidas. Assim vai o turista até a piscina da reserva, para treinamento com a máscara e orientações dos guias. Depois da preparação, um grupo de até nove pessoas chega à nascente do Baía Bonita para flutuar em trecho de 900 metros.
Olhando de fora, nada de tão especial. Vêem-se alguns peixes ? são cerca de 30 espécies ? no límpido rio. Mas ao se mergulhar, o impacto das águas geladas dura segundos, o tempo de se dar conta de que os enormes dourados e a colorida vegetação estão mesmo ali, num mundo à parte. Não é exagero: por terem grande quantidade de calcário, as águas dos rios de Bonito são tão transparentes que às vezes dá para esquecer que se está dentro d?água. E o bom mesmo é isso: esquecer e deixar o curso do rio levar o corpo até o fim do percurso.
Durante a descida das águas, há trechos mais rasos, onde quase se flutua dentro da vegetação aquática. Em outros, mais fundos, as coloridas piraputangas ? em tupi-guarani, seu nome quer dizer peixe vermelho ? nadam juntas aos corpos estranhos dos turistas. Mas nem adianta tentar tocar nelas! Os peixes se afastam a qualquer sinal de maior aproximação.
Quem não quiser mergulhar pode acompanhar o trajeto num barco que segue os ?flutuadores?, porque ali não há nadadores. Pernas e braços devem mesmo flutuar, sem se mexer, para não cometerem o pecado de turvar a água tão cristalina. E se o fôlego estiver no fim, há deques de madeira em alguns pontos do rio, onde dá para colocar os pés e tomar um pouco de ar.
Ao final do trajeto, pode-se ir ao encontro dos rios Formoso, Formosinho e Baía Bonita, e fazer um curto passeio de bote pelo Formoso, de apenas 150 metros, para então relaxar na bóia com cama elástica e se pendurar na carretilha (tirolesa).
Passeios como o da Reserva Baía Bonita também podem ser feitos na Fazenda São Geraldo, onde fica a nascente do Rio Sucuri. Lá, a roupa de neoprene é opcional, apesar de recomendável no inverno, e há flutuação por quase dois quilômetros até a foz, no Rio Formoso. Outra opção é a flutuação no cristalino Rio da Prata, passeio que começa na nascente do Rio Olho D´água, a 50 km de Bonito. Os mais aventureiros podem praticar 30 minutos de mergulho com equipamento scuba , para se sentirem ainda mais perto dos peixes.
No Pantanal há dois tipos de guias: urbanos e nativos
Existem dois tipos de guias no Pantanal. Os nascidos e criados no mato, que têm um olhar de lince e sabem o que significa qualquer mudança de vento, como um galho balançando numa árvore, e que imitam todos os cantos dos pássaros. E os que chegaram na região outro dia, foram criados na cidade grande, mas trazem na bagagem um inglês fluente e cursos superiores em faculdades de biologia ou veterinária. Com a estrutura montada pelas fazendas para receber turistas, principalmente os estrangeiros, um guia acaba precisando do outro.
Ary José Viana, de 46 anos, e Gabriella Zampoli de Assis, de 21 anos, trabalham na Pousada Caiman. Ele é um autêntico pantaneiro. Anda pela pousada de calça jeans, botas, chapéu e com o facão preso à cinta de linha de lã colorida. Ele está sempre à frente do grupo, determinando o ritmo do passeio.
? Ali está um macaco-prego ? aponta seu Ary para uma árvore a metros do distância onde só se vêem os galhos mexendo.
O grupo pára imediatamente e ele, então, começa a ensinar aos urbanos turistas como descobrir o tal macaco-prego, que, na verdade, está pulando de árvore em árvore. Logo, os mais atentos começam a dar urras de satisfação e a mostrar aos que ainda não viram onde está agora o animal. Alguns chegam a falar as mesmas frases pronunciadas pelo seu Ary, como se o texto fosse oficial. E era.
Gabi, como é chamada, saiu de Bauru, no interior de São Paulo, onde trancou a matrícula na Faculdade de Biologia. Ela está sempre com o uniforme dos guias, calça verde oliva e camiseta cáqui, e com um almanaque em inglês que mostra todos os animais do planeta. Sabe preparar o tereré, tem histórias na ponta da língua e em um ano e meio trabalhando como guia, já viu seis onças-pintadas.
? Aqui nenhum dia é igual ao outro porque a natureza está sempre mudando e os turistas também ? diz.
Em comum, eles mantêm a paixão pela riqueza da fauna e flora brasileiras. E você pode até não encontrar seu Ary e Gabi, mesmo ficando hospedado na Cayman, mas certamente terá guias tão diferentes, e ao mesmo tempo, tão parecidos. (Mario Toledo)
Um passeio agradável pela gastronomia regional
Com tantas atividades no Pantanal, a alimentação reforçada é imprescindível. Que bom! Essa é a desculpa perfeita para deliciar a culinária sul-mato-grossense.
O dia começa com o ?quebra torto?, café da manhã pantaneiro que inclui frutas, leite, queijos e pães. Tudo fresquinho e produzido nas próprias fazendas. A refeição matinal pode ter até arroz-de-carreteiro, feito com carne de sol e toucinho ou bacon.
No almoço e no jantar, dá para escolher pratos com todo tipo de peixe: dourado ou pintado a urucum, costela de pacu e caldo de piranha, considerado afrodisíaco pela população local. O acompanhamento pode ser arroz com pequi, fruta típica do cerrado, também usada em licores. Opções mais audaciosas são carne de jacaré ? não tão macia quanto a do peixe, mas muito saborosa ? ou de javonteiro, fruto do cruzamento de javali com porco monteiro.
Quem for a Mato Grosso do Sul também não pode deixar de provar chipa (espécie de pão de queijo com polvilho), lingüiça de Maracaju e o vitelo do churrasco pantaneiro, servido com aipim frito e sopa paraguaia. Não se assuste: a sopa não é líquida, e sim um bolo salgado, feito com farinha de milho. Melhor ainda se for o vitelo orgânico do Pantanal, que é criado solto no campo, não é alimentado com rações e, para crescer, só mama e pasta.
Para beber, o tereré (pronuncia-se tererê) é a bebida típica vinda do Paraguai, semelhante ao chimarrão, mas tomada gelada. Corumbá tem o mate chimarrão, refrigerante verde feito a partir da erva-mate. De sobremesa, forrundu (doce de mamão e rapadura de cana) ou mesmo o brasileiríssimo doce de leite com queijo. E se, ainda depois desse cardápio a energia faltar, a solução é a cachaça Taboa, de Bonito, com mel, guaraná em pó e canela.
Corumbá revitaliza seu patrimônio histórico
Do alto, vê-se a cidade margeada pelo Rio Paraguai, o principal a banhar o Pantanal
Corumbá, cidade de 1778, a mais antiga do Mato Grosso do Sul, tem muita história para contar. Andando pelos cruzamentos da cidade, a 435 km de Campo Grande, o turista se surpreende ao olhar para o lado e, no fim da rua, ver o Rio Paraguai, o mais pantaneiro de todos ? ele é o principal da bacia hidrográfica da região ? e que, de baixo declive, transborda na época da cheia. Com 70% de áreas pantaneiras em seu território, ?a cidade branca?, de terras ricas em calcário, é também chamada pelos corumbaienses de ?capital do Pantanal?.
No Rio Paraguai, a divisão com a Bolívia se dá no Canal do Tamengo, onde a navegação só é permitida com autorização boliviana. No porto fluvial, que de 1870 a 1930 foi o terceiro mais importante da América Latina, há cerca de 70 barco-hotéis, com suítes, cozinha, sala de estar e área aberta. Essa estrutura é possibilitada pela largura média de 170 metros do Rio Paraguai, o que facilita a navegação.
Em 1865, durante a Guerra do Paraguai, Corumbá foi invadida e destruída e a navegação interrompida no Rio Paraguai. O Forte Junqueira foi construído em 1871, depois que a cidade foi retomada do Paraguai. De lá, o turista pode avistar o rei dos rios pantaneiros, que delineia a cidade.
Há cerca de cem construções históricas em Corumbá, 88 delas tombadas em 1992 pelo Patrimônio Histórico Nacional. A maior parte data do fim do século XIX e precisa de obras de revitalização, que vêm sendo impulsionadas pelo Programa Monumenta, do Ministério da Cultura, com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Já estão em restauração a Praça General Rondon e a Escadinha da Praça XV, de 1923, que tem mirantes de onde se vê o Rio Paraguai e seus barcos de pesca.
A cidade tem também um aeroporto internacional, que, desativado, hoje só recebe aviões locais, os chamados ?táxis aéreos?. Também desativado, o antigo Trem do Pantanal pode voltar a funcionar no trecho Corumbá-Campo Grande, em projeto que promete revitalizar ainda mais a ?capital do Pantanal?.
O Trem do Pantanal é esperança de mais uma opção de turismo
De 1941 a 1992, o Trem do Pantanal levava passageiros e turistas de Campo Grande a Corumbá, num percurso de 459 km que, em cerca de 12 horas, passava por áreas pantaneiras. Hoje, o trem percorre o mesmo trajeto três vezes por semana, mas apenas para transporte de carga.
No ano passado, o governo do Mato Grosso do Sul fez um estudo de viabilidade, e agora espera acordo entre a União e a concessionária Novoeste, que administra o trecho. Segundo a coordenadora do Programa Trem do Pantanal, Leatrice Couto, o estudo prevê um gasto de R$ 224 milhões para recuperar a malha ferroviária e 15 das 33 estações existentes.
? Pensamos em operar com um trem mais veloz, à noite para passageiros e de dia para o turismo, com paradas mais longas nas estações. O cenário desse trecho é delirante ? exalta Leatrice.
A coordenadora não exclui o transporte de carga e ainda prevê a realização de atividades culturais e recreativas no espaço das grandes estações de trem, como a de Corumbá.
? Torço para que o trem volte logo a funcionar. Lembro as viagens de 12 horas até a capital, quando só havia bife a cavalo no cardápio. Era um trajeto lindo ? recorda a corumbaiense Fátima de Andrade.
Para o sul-matogrossense João Antônio Venturini, a construção da BR-262 foi o principal fator para a desativação do Trem do Pantanal:
? A rodovia poderia muito bem conviver com o trem. A ferrovia foi construída numa altura em que a água não chega, diferentemente da estrada, que chega a ter trechos de 100 km inundados na época da cheia.
A BR-262 é a rodovia principal, uma opção à Estrada Parque, de terra, Área Especial de Interesse Econômico desde 1993, por passar em trechos com grande variedade de fauna e flora, mas que também tem partes inundadas.
Agora, espera-se que haja mais uma opção de transporte com os vagões celebrizados na voz de Almir Sater, na música ?Trem do Pantanal?, de Geraldo Roca e Paulo Simões: ?Enquanto esse velho trem atravessa o Pantanal/ As estrelas do cruzeiro fazem um sinal/ De que esse é o melhor caminho para quem é como eu/ Mais um fugitivo da guerra?.
SUZANA VELASCO e FERNANDO QUEVEDO viajaram a convite do governo do Mato Grosso do Sul, por meio da Fundação de Turismo do estado. MARIO TOLEDO viajou a convite do Refúgio Ecológico Caiman.
30/08/2023 - 00:00