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quinta, 26 de agosto de 2010

Serra da Bodoquena: Um paraíso ameaçado?

Até a segunda metade do século XX, o Estado de Mato Grosso do Sul apresentava-se coberto, em quase sua totalidade, por vegetação nativa. A partir da década de 40 iniciou-se um processo de contínua modificação dessas paisagens naturais. As florestas estacionais e semi-deciduais da Região Centro-Sul do Estado foram intensamente explorados pela indústria madeireira e seqüencialmente substituídas por extensas monoculturas e pecuária extensiva de baixa produtividade. Atualmente o Mato Grosso do Sul conta com menos de 30% da sua cobertura vegetal nativa (FUNDAÇÃO CÂNDIDO RONDON, 2007). Na Bacia Hidrográfica do Rio Miranda, a qual abrange cerca de 12% da área do Estado, a situação não é diferente. Um levantamento realizado em 2004 apontou que mais de 80% de sua área encontra-se ocupada por agricultura, campos e pastagens, com destaque para cultura da soja, o arroz de sequeiro e irrigado e o milho (PEREIRA & MENDES, 2004).

A Serra da Bodoquena encontra-se inserida na Bacia Hidrográfica do Rio Miranda e ocupa uma posição estratégica para a conexão dos biomas Mata Atlântica, Cerrado e Pantanal, o que também lhe confere uma alta diversidade biológica. Sua importância é reconhecida nacionalmente e internacionalmente, o que lhe conferiu os títulos de prioridade extremamente alta para conservação no Mapa das Áreas Prioritárias para a Conservação, Utilização Sustentável e Repartição de Benefícios da Biodiversidade Brasileira (MMA, 2002; MMA, 2007); zona núcleo da Reserva da Biosfera do Pantanal, cuja principal função é assegurar a proteção da biodiversidade (RBMA, 2007) e; integrante do Corredor de Biodiversidade Miranda - Serra da Bodoquena, que visa a manutenção de um corredor entre os biomas cerrado e pantanal. Além disso, devido as suas características peculiares, no ano de 2000 foi criado o primeiro Parque Nacional do Estado do Mato Grosso do Sul, o Parque Nacional da Serra da Bodoquena com cerca de 76.000 hectares.
Porém, apesar de abrigar um imenso patrimônio natural e ser fundamental para conservação da biodiversidade e dos recursos hídricos da região, a Serra da Bodoquena vem sofrendo com vários impactos ambientais advindos da ocupação e atividades econômicas desenvolvidas na região.
Um estudo realizado pela Conservação Internacional estimou que até 2004, cerca de 44,55% dos 363.442 km2 da Bacia do Alto Paraguai teve sua vegetação original suprimida. Destes, cerca de 136.102 km2 ou 37,44% da BAP foram em áreas de Planalto e o restante na própria planície pantaneira. O estudo ainda apontou que municípios como Jardim e Bodoquena já perderam entre 40 e 60% de sua vegetação original, enquanto Bonito já perdeu entre 60 e 80% (HARRIS, et al. 2005). Outro estudo aponta que boa parte da vegetação original localizada no entorno do Parque Nacional da Serra da Bodoquena já foi substituída por áreas de pastagem cultivada (FUNDAÇÃO NEOTRÓPICA DO BRASIL, 2005).

O resultado dessa ocupação desordenada é uma grande perda da biodiversidade original da região. Apesar disso, a região da Serra da Bodoquena ainda possui o maior remanescente de florestas do Estado do Mato Grosso do Sul com formações de cerrado, floresta estacional semi-decidual e floresta estacional decidual. Esta última considerada uma das formações vegetais mais seriamente ameaçadas do Brasil (STRAUBE, 2006).

Recentemente tem sido verificado o avanço de carvoarias no sudoeste do Estado do Mato Grosso do Sul (BITENCOURT, 2005), as quais têm preferência pela utilização da mata decídua para produção de carvão (STRAUBE, 2006). Estima-se que somente em sete municípios da região da Serra da Bodoquena existam mais de 36 carvoarias o que representa, sem dúvida, uma grande ameaça para o meio ambiente e pode ser considerado incompatível com a realização de algumas atividades como o ecoturismo (BITENCOURT, 2005).

Outro problema que pode ser relatada para a conservação da região é a instalação de assentamentos rurais em locais inadequados para o desenvolvimento de programas de reforma agrária. Um exemplo disso são os assentamentos Guaicurus e Canaã, os quais são dominados por declives muito acentuados e/ou afloramentos calcários (IBAMA, 2004) o que dificulta a utilização da área pelos assentados, ou ainda a existência de projetos para instalação de assentamentos no entorno de unidades de conservação. Um estudo desenvolvido pelo Grupo Iguaçu discute os problemas ambientais decorrentes da implantação inadequada de assentamentos rurais na região da Serra da Bodoquena, o que pode levar a degradação dos recursos naturais desta região (OLMOS, et al. 2007) e representar uma ameaça ao próprio Parque Nacional da Serra da Bodoquena.

Durante os anos de 2004 e 2005 uma série de ações de fiscalização foram realizadas nos municípios de Bodoquena, Bonito, Jardim e Porto Murtinho, concentrando-se principalmente no entorno do Parque Nacional da Serra da Bodoquena. As principais irregularidades constatadas durante os trabalhos de fiscalização foram a posse irregular de moto-serra, o acondicionamento irregular de agrotóxicos, a realização de drenagens em áreas de banhado e sua substituição por agricultura ou pasto e desmatamentos não autorizados (PAULINO,  et al., 2005). A constatação de que áreas de banhado estão sendo drenadas e substituídas por agricultura ou pasto é muito preocupante, pois estas áreas funcionam como um filtro natural além de serem áreas de abastecimento para os rios da região, desta forma, essa atividade pode afetar tanto a qualidade quanto a quantidade dos recursos hídricos. O acondicionamento irregular de agrotóxicos também chama a atenção, principalmente pela possibilidade de contaminação dos recursos hídricos, devido as características do solo e geologia da região.

As características hidrológicas e geológicas da Serra da Bodoquena com a formação de rochas carbonáticas fazem da região a mais importante e significativa das cinco áreas de recarga dos aqüíferos da bacia do Alto Paraguai, de acordo com o diagnóstico ambiental do Plano de Conservação da Bacia do Alto Paraguai -PCBAP. Além disso, as litologias calcárias que compõem a Serra da Bodoquena são responsáveis pelos inúmeros rios cristalinos, cachoeiras, represas naturais, tufas calcárias, rios de sumidouros e grutas, tão característicos da região e que a tornaram um famoso destino de ecoturismo no Brasil e a transformaram em uma das cinco maiores províncias espeleológicas do país.

Porém, essa mesma característica fez com que a indústria da mineração apresentasse interesse pela região, a qual explora as formações de rochas como suprimento de matéria prima para a produção de cimento e calcário. As atividades mineradoras, além de gerarem forte impacto visual, causam assoreamento e modificam a trajetória dos corpos d’água, contaminando as bacias com dejetos de diferentes origens e intensificando processos erosivos, com conseqüente descaracterização da paisagem (ALMEIDA et. al, 2003).

O turismo vem crescendo muito nos últimos anos e está exercendo um forte impacto econômico na região. Isso vem ocorrendo principalmente na porção sul da Bacia Hidrográfica do Rio Miranda. (MATO GROSSO DO SUL, 2001; PEREIRA & BARRETO, 2003). Apesar do município de Bonito se destacar nessa atividade, outros municípios como Jardim e Bodoquena também apresentam alto potencial turístico e vem desenvolvendo ações para incentivar a atividade na região.

Nesse contexto o turismo pode surgir como uma oportunidade de atividade de menor impacto e que pode ser mais compatível com a conservação da região já que os visitantes buscam na região o contato com a natureza e suas famosas águas claras. De fato, na região existem alguns avanços conceituais e operacionais, que tornam menores os impactos de tal atividade, tais como: obrigatoriedade de acompanhamento de guia credenciado e limites na capacidade de visitação em alguns atrativos turísticos (SABINO & ANDRADE, 2002). Porém acomodar e ajustar o crescente número de visitantes na região da Serra da Bodoquena vem se tornando um grande desafio, o qual exige um sério planejamento e ações de controle e monitoramento da atividade.

As ameaças relatadas para a região da Serra da Bodoquena não geram impactos somente sobre a biodiversidade e os recursos hídricos locais, mas também afetam diretamente a planície pantaneira. As nascentes dos rios que correm para o Pantanal estão localizadas principalmente nas regiões de planaltos e a remoção da vegetação nestas áreas, vem sendo a principal causa do assoreamento dos rios na planície e da intensificação das inundações na Bacia do Alto Paraguai (HARRIS, et al. 2005). Ressalta-se ainda que a conservação da região da Serra da Bodoquena, especialmente do Parque Nacional da Serra da Bodoquena é de extrema necessidade para a continuidade da atividade turística das áreas de entorno, pois o desmatamento daquela área comprometeria a integridade de todos os atrativos da região (BOGGIANI, 2007).

Apesar dos inúmeros problemas descritos, os municípios de Bonito, Bodoquena, Jardim e Porto Murtinho contam com apenas uma unidade de conservação de tamanho expressivo, o Parque Nacional da Serra da Bodoquena com cerca de 76.000 ha. Além do Parque, Bonito conta ainda com dois Monumentos Naturais Estaduais: da Gruta do Lago Azul e do Rio Formoso e as RPPNs Fazenda da Barra e São Geraldo. Jardim também possui outras unidades de conservação, sendo elas: RPPN Cabeceira do Prata, RPPN Xodó do Vô Ruy e RPPN Buraco das Araras.

Algumas iniciativas de organizações não governamentais e do setor privado têm sido importantes para desacelerar o processo de degradação da região, apesar disso existe urgência em investimento em ações de fiscalização e monitoramento ambiental por parte do poder público, além de programas de recuperação e conservação ambiental. Além disso, a criação de áreas protegidas sejam elas, públicas ou privadas, assim como investimentos na efetiva implantação destas áreas são fundamentais para a conservação desse inestimável patrimônio que é a Serra da Bodoquena.

* Este texto foi adaptado do Relatório Parcial do Plano de Manejo da Cavidade Lagoa Misteriosa e contou com a colaboração de Sandro M. Scheffler.
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COLUNISTA

Angela Pellin

angela@portalbonito.com.br

Angela Pellin, Bióloga e Especialista em Biologia da Conservação. Já trabalhou na Secretaria de Estado de Meio Ambiente em Bonito e na Fundação Neotrópica do Brasil, com sede em Bonito. Atualmente é doutoranda do Programa de Ciências da Engenharia Ambiental da USP, onde desenvolve um projeto com as Reservas Particulares do Patrimônio Natural do Estado do Mato Grosso do Sul.

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